FRESTA, RACHADURA E UM VÃO NA GRANDE AVENIDA
Anderson Ramalho
Iniciar um tão sonhado curso de mestrado nas condições do ano de 2020 não é um trabalho fácil, adaptar as atenções para um cenário cujas perspectivas mudam a todo o tempo pode alimentar as habilidades associativas do cérebro ou nos empurrar para um mar de ambiguidades. Porém, sem transformar o otimismo numa forma de recalcar essa experiência, podemos pensar esse momento como privilégio. Não me limito à comparação com grupos realmente vulneráveis, falo em relação a pesquisadores de outras épocas, viver uma experiência social com tantas convergências como essa – e as conexões, mesmo que muitas delas forçadas – pode nos conduzir para uma condição inédita cujos reflexos criarão reverberações importantes para a coletividade. O enunciado desse texto não deixa de passar pela forma como estamos sendo tocados pela pandemia de COVID-19, mas principalmente pelas estratégias de enfrentamentos as transformações as quais estamos submetidos nos âmbitos social, cultural e político. Este texto é um exercício para enxergar possíveis potenciais de descolonialidade nessas transformações. Também visa abrir caminho para outras estratégias de resistências à matriz colonial de poder, como a zona autônoma temporária (TAZ), de Hakin Bey(2001). Embora a TAZ não faça referência à matriz colonial de poder (MCP), de Quijano comentada por Walter Mignolo no livro O lado mais escuro da modernidade (2017), cabe se valer desses tempos de adaptações para colocar a TAZ a serviço da descolonialidade.
Nas primeiras conversas sobre a “Revista Gambiarra”, surgiu a imagem da “Fresta” como representação frente à necessidade de pensar um lugar de atuação para o artista pesquisador, tocado pelas consequências da pandemia, e também como referência que aproximasse diferentes vontades criativas. Mesmo diante da imagem mental mais imediata, a fresta nunca se apresenta desassociada de um suporte tangível. Seja como resultado da infiltração da água da chuva sobre um telhado, ou a golpes de martelo em uma rocha, é na relação espaço-matéria que a fresta existe. Uma boa alegoria à interdependência entre natureza e humanidade, presente em diferentes culturas colonizadas. Se a parede tende a ser um obstáculo, a fresta é uma passagem alternativa; ou seja: se a separação natureza humanidade ainda serve ao plano de dominação e controle da matriz colonial cristã, culturas como a Pachamama seria a alternativa. Pensar a cultura local criada pela experiência empírica com a terra é usar as frestas no padrão colonial de poder.
Independente de a luz ser onda ou partícula, passar pela fresta é o que importa. A rachadura é um sinônimo de fresta que progride de modo semelhante a uma revolução. A rachadura é uma fresta com vida que nasce da soma de diversos fatores, à revelia do construtor, quando ainda sutil serve para espiar sem ser visto e, quando explícita, sinaliza que a estrutura está por ruir. Pensar a fresta como abrigo temporário, poderia significar a apropriação dos estágios do progresso da rachadura, que começam como uma pequena fissura e terminam como um vão aberto.
Para dar um melhor contorno, busco na expressão “psicotopologia do cotidiano”, de Hakin Bey (2001), auxílio para refletir sobre a fresta. Para isso, é preciso ir além da simbologia vertical da parede e entrar no plano horizontal dos mapas. A fresta seria, portanto, um território afetivo para operar cognições que surgem na sombra das experiências sociais – em nosso caso, o próprio isolamento social.
Junto a isso há uma maior dependência de um regime de comunicação em ascensão, que vem cada vez mais sendo compreendido e operado como ferramenta dessubjetivante. Regime que vem restringindo a troca de informação a ilhas de afinidade, regida por algoritmos a serviço de um modelo de negócio cada vez mais comum entre as plataformas da web, onde a subjetividade é convertida em dados úteis em apontar qual o melhor “rebanho” a ser alinhada. Pacotes de dados são mercadorias ao alcance de qualquer interesse, como os que se dispõem a disseminar pós-verdades como informações legítimas até por chefes de estado.
Diante dessa conjectura surge a pergunta: como lutar uma guerra na qual um limite moral não nos permite usar as mesmas armas que nossos inimigos? Também não se pode esperar que por trás da fresta haja uma resposta fácil para essa pergunta. Porém, o território poético é impróprio para o fascismo e a hostilidade é estranha até mesmo ao seu correspondente mais próximo, o artista burguês e sua disposição em atuar em causa própria. Como na época em que ainda existiam territórios fora dos mapas, um enclave poético é um lugar para reorganizar a vontade e restaurar o censo de resistência.
Contrapor-se a essas estruturas de poder se tornou um esforço integral diante de um teatro de guerra em pleno movimento, que vem se radicalizando desde as “jornadas de julho de 2013” – um slogan glorioso para descrever um cenário que mais tarde poderia ser descrito mais como um tipo de berçário protofascista. Momento para teorias e estratégicas citadas anteriormente estarem ativas em nosso estado de alerta. À luz de tais teorias, podemos notar que as manifestações, antes sutis, agora escancaram a face mais pornográfica da matriz colonial de poder: o próprio fascismo. No cenário atual, o conflito se estendeu por todas as instâncias, mas ainda é através das malfadadas bolhas das redes sociais que assistimos (de um falso camarote virtual) os embates diários, dividindo ou misturando a atenção entre House of Cards, na Netflix, The Intercept, no Facebook, ou o diário oficial do governo, no Twitter, sem contar a lama que corre no subsolo do WhatsApp. Como quando assistia, no último 31 de maio, com um certo entusiasmo, corinthianos a passos firmes pela Paulista, em ato pela democracia no Instagram, através do Mídia Ninja.
Mesmo entendendo que o Mídia Ninja mereça destaque sobre sua participação nesse processo, vou me ater apenas à atual estratégia em seu Instagram, pois na tentativa de furar a bolha, intercala vídeos de curiosidades ao material de denúncia contra a violência do Estado, assim como imagens de resistência e desobediência civil, levando informações do fronte diretamente ao espectador desavisado que só queria sentir o conforto de ver uma matilha de labradores pulando em uma grande piscina. Entre esses vídeos, um me chamou a atenção: uma manifestante pró-governo que narrava de dentro do carro seu temor aos Antifas corinthianos. Ao reconhecer que seus opositores são Antifas, ela definia muito bem o seu lugar. Um ato falho, mas que tem origem em meados das décadas de 1980-90, quando a rede Globo cobria manifestações na Europa, associando Antifas a rebeldes violentos – narrativa que revelava o temor que algo similar acontecesse por aqui, na rabeira da democratização.
O contexto do Brasil na época não exigia que a grande audiência da Globo soubesse sobre fascismo fora da Segunda Guerra. Por isso, associar os corintianos aos Antifas era o certo a se fazer, tendo em vista que a referência parecia ainda ser aquela dos anos 1980. Mesmo que no dia seguinte proliferassem tentativas de converter o termo “Antifas” por “Antibras” (uma corruptela ao modo Silas Malafaia), o título já estava sacramentado. Mais uma estrela na camisa da CBF. Contar alguma estória sobre o Brasil recente, trazendo como o enredo o futebol é algo realmente clichê, mas não se pode negar a didática disso: família que veste a camisa da CBF e o bando de corinthianos, colocados frente a frente como dois modelos nucleares da sociedade. Posso até imaginar o narrador: “Do lado direito, de verde amarelo, os representantes da matriz colônia de poder. Do outro, vestindo o uniforme negro do Corinthians, os representantes da zona autônoma temporária.”
O neoanarquismo de Hakin Bey (2001) apresenta o bando como um modelo de organização social que ainda preserva valores de convivência anteriores ao surgimento do modelo familiar, cuja origem pode estar relacionada ao nascimento da agricultura e, consequentemente, à propriedade privada. A família como base nuclear da sociedade é um consenso da cristandade. O bando como modelo de sociedade coletivista e horizontal, separado em pequenos grupos sem uma estrutura maior por trás; a família fechada geneticamente, e pela posse masculina sobre as mulheres e crianças. Por outro lado, o bando aberto – não para todos, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram um amor por algo em comum.
Mas aquele engajamento da torcida corinthiana me fez lembrar a final da Libertadores da América entre São Paulo o Atlético Paranaense (2005). No meio do jogo, uma faixa imensa foi desenrolada na arquibancada do Estádio do Morumbi com a frase “BRASIL NEGRO SALVE” – letras garrafais sobre um fundo branco, algo que se distinguia em muito dos rebuscados desenhos e frases de ordem relacionadas à rivalidade entre as torcidas ou as glórias do passado do clube. Ver uma torcida organizada passando um recado para toda a sociedade era como se uma fresta se abrisse no meio de uma transmissão da rede Globo. Um rasgo na Matriz Colonial de Poder. Na época, não conhecia o trabalho do grupo de pesquisa e ação direta Frente Três de Fevereiro, que por meio de seu trabalho buscava levantar o debate sobre o racismo do Brasil, em especial o racismo policial. Por algum tempo, tive o prazer de pensar que aquela ação pudesse ter sido gestada dentro de uma torcida organizada. O bando rompendo temporariamente com o recorte que tempo que dura a partida de futebol para falar à sociedade. Mesmo que se tratasse de uma ação artística, pautada em engajamento social e pesquisa muito bem consolidada, a surpresa de ver aquela frase tão simples, direta e contundente, fez-me vislumbrar uma consciência que pudesse ser capaz de no futuro levar uma torcida organizada de futebol a cantar e empunhar frases em favor da democracia a passos firmes por uma importante avenida do Brasil.
Referências
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. Conferência no Instituto para o Estudo do Fascismo. In:. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Lisboa: Editora Brasiliense, 1985.
BEY, Hakin. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira
A física quântica entende o princípio da incerteza, definido por Werner Heisenberg, como a impossibilidade de determinar com precisão o movimento e posição de uma partícula subatômica. Seu comportamento instável revela que quanto mais se sabe sobre um, menos se saberá sobre o outro. A instabilidade como regente aponta que as trajetórias de deslocamento escapam às previsões. Assim como no princípio da incerteza, conforme busco localizar os rastros do meu movimento, eles já se alteraram. O que fica é o processo como a topografia imprecisa daquilo que resiste e se regenera.
As ruínas que insistem em sobreviver tensionam a incômoda sensação de um mundo em vias de esgotamento. São elas que talvez nos dêem pistas sobre como insubordinar-se frente ao paradigma de destruição. Mas não basta a sobrevivência, a reinvenção é indissociável à tudo o que se desprende do processo de desaparecimento. Em Princípio da Incerteza, me articulo para captar os traços que ficam como memória fraca, algumas vezes inventada, no tecido onde caminho sobre carvões por uma hora.
O caminhar, tão necessário para os preâmbulos civilizatórios, reflete nessa ação os passos que rumam a lugar nenhum - o ir e vir num espaço delimitado cujo único objetivo é experimentar o atrito entre os meus pés descalços numa superfície hostil. Quais são os traços deixados por essa caminhada insegura, trêmula, que busca equilibrar-se? Encontrar linhas, curvas e desenhos onde antes havia apenas sombra - manchas geradas pelo contato do carvão no tecido - é experienciar retraçar um movimento impossível, já perdido, e assim perceber que de alguma forma, ele se reconstitui a partir de uma nova configuração.